Ayrton Mugnaini Jr.
Justamente por ser óbvio, é bom lembrar: pessoas deficientes
merecem mais atenção e mais cuidados. E nem precisaríamos
acrescentar: cães deficientes também. Muitos de nós conhecemos
ou temos cães que nasceram com problemas mentais, visuais,
auditivos, ou foram vítimas de doença grave, acidente ou violência,
ou ainda estão bem velhinhos e perdendo visão, audição ou mobilidade.
Aqui vai um guia geral, mesmo sem esgotar o assunto, visando
ajudar nossos peludos deficientes a viver mais – e com qualidade de vida.
Encarando e entendendo a situação
Cães costumam se adaptar bem e rapidamente a problemas
Cães costumam se adaptar bem e rapidamente a problemas
físicos, mesmo os mais drásticos e graves. Os donos, obviamente,
têm de adaptar suas vidas às dos cães que, afinal, têm
necessidades especiais. Também obviamente, vale a pena, não
só pelo amor ao animal, mas também pelas lições de paciência,
altruísmo, satisfação e bem-estar por ser útil e fazer diferença
na vida de alguém de quem gostamos.
Certas deficiências não incomodam tanto a quem as tem. Explico.
Uma pessoa ou animal cega ou surda de nascença não anseia por
visão ou audição, pois não pode sentir falta do que nunca teve e
costuma reagir e se virar na vida usando os outros sentidos. O fato de
um cão ser surdo, seja ou não de nascença, não significa que ele seja
impedido de passear com o dono. Idem para cães “cadeirantes”,
com patas traseiras imobilizadas ou ausentes.
Esteja pronto para consolar o peludo caso ele tenha se tornado cego,
cadeirante ou adquirido outra deficiência. É natural que ele fique
deprimido, e a melhor terapia é a ocupacional, continuando com as
caminhadas e o máximo possível de brincadeiras. Homeopatia
também pode ajudar a acalmá-lo.
Quanto a cães deficientes mentais, são mais raros por dois simples
motivos. Um: as mães caninas abandonam os filhotes quando
percebem que estes têm menos probabilidades de sobrevivência.
Pode ser triste para nós humanos, mas Mamãe Natureza é
pragmática e não adianta mesmo a gente chorar – mas adianta
tentarmos salvar estes filhotes. Dois: os cães que sobrevivem não
ostumam viver muito, vítimas da própria doença ou suas consequências
como ataques e paralisias, e em casos extremos pode até ser
aconselhável eles serem sacrificados.
Quando alguém chama um cachorro de “idiota” ou “retardado”,
geralmente é puro desabafo de frustração ou raiva tipicamente
humanas perante cães mais difíceis de serem socializados e
aprenderem a obedecer comandos. No máximo, o cão costuma
ter grandes fobias, e pode levar semanas para ele aprender a, por
exemplo, andar com as patas traseiras. Fui dono por algum tempo
(junto com meu filho e a mãe dele) de uma cadela jogada num rio
dentro de um saco que foi descoberta em tempo para sobreviver,
mas aparentemente a falta de oxigênio afetou-lhe a mente e sua
socialização foi bem mais difícil durante todos os cerca de
dez anos que ela viveu.
Algumas dicas para cuidar
Nunca é demais lembrar que socializar o cão, sela ele deficiente
Nunca é demais lembrar que socializar o cão, sela ele deficiente
ou normal, é sempre importante. Como o peludo deficiente
necessita de mais cuidados que um normal, o ideal é conviver
com ele em casa, não num quintal, jardim ou quartinho dos fundos.
Não se esqueça de inspecionar toda a casa para remover
qualquer coisa que possa prejudicar um cão cego ou desatento,
como galhos baixos, tábuas soltas, piscinas ou grandes fontes
de água, escadas ou rampas muito lisas ou sem portões, móveis
com cantos pontudos ou buracos no chão.
Procure evitar mudanças frequentes ou drásticas para o cão não
se desorientar. E o cão deve ser examinado todos os dias; afinal, ele
não tem a mesma facilidade humana de expressar com precisão o
que sente e, se tiver paralisia ou insensibilidade em partes do corpo,
não sentirá dor e portanto não poderá reagir a riscos de infecções,
mesmo da forma simples, prática e bem canina de se lamber para
curar ou minimizar feridas ou irritações. Como dissemos, você pode
– e deve – passear com cães cegos ou surdos, apenas não se
esquecendo de que é você quem enxerga e ouve por ele.
É bom apresentar o cão a outros cães deficientes. Você inclusive
pode trocar experiências sobre o assunto com outros donos e donas.
Mas cuidado ao apresentar o cão cego ou surdo a outros cães – há
o risco de ele estranhar e rosnar ou até morder. Se você tem outros
cães ou gatos, uma boa ideia é colocar-lhes guizos no pescoço, para
que o cão perceba que eles estão chegando. (Você pode também
prender com elástico guizos em um de seus próprios tornozelos, para
o cão saber que você está próximo.)
Guizos vão bem também em bolas, assim como perfumes de toucinho
ou baunilha, ou bolas que façam algum ruído, para facilitar o cão
deficiente visual a encontrá-las e brincar com elas, especialmente
se ele não é cego de nascença e adorava brincar de bola quando
enxergava. Assim como jogadores de futebol se tornam técnicos,
um cão muito ativo que tenha de e “aposentar” por invalidez poderá
ter uma segunda carreira como cão de terapia em hospitais
ou casas de repouso.
Sempre “converse” com o peludo, e procure falar sempre em tom
alegre e “pra cima”, especialmente se ele for cego. O cão sente
segurança da presença do dono pela voz. É verdade que cães são
excelentes para afastar a tristeza humana, mas isso não significa que
devamos contaminá-los com ela. Ao viajar ou passar muito tempo fora
de casa com ele, não esqueça do cobertor, caminha ou outro objeto
com que ele esteja acostumado, para evitar que o bicho fique
traumatizado ou inseguro.
Esta dica vale para todo mundo, deficiente ou não, humano ou
peludo: evite paparicar e proteger demais! Deixe o cão solto o
suficiente para se divertir e aprender a se virar na vida. Mesmo
se ele seja de pequeno porte, não caia na tentação de colocá-lo
em locais onde ele inicialmente não alcance (para comer,
por exemplo), pois ele se confunde se de repente aparece um “deus”
ou “deusa” para facilitar tudo. Evite também cair na armadilha daquele
lhar ou ganir de quem não come há meses; obesidade, especialmente
em cães inativos, é um risco e um problema a mais de que
eles não precisam.
E o que é ser deficiente ou ser normal?
Parece-me adequado lembrar uma conversa que tive este ano
Parece-me adequado lembrar uma conversa que tive este ano
com uma nova amiga. Ela disse: “Tenho uma filha com síndrome
de Down”. Não contive um “Que pena”... e levei o mais carinhoso
tapa verbal: “Como assim, ‘que pena’? O mundo material é feito
de diferenças, é preciso acabar com esse preconceito de piedade!
Pessoas com Down podem viver bem e são pessoas excelentes.
E pessoas comuns sofrem de inveja, fraqueza, inconstância,
distúrbios piores do que um déficit mental.”
Do mesmo modo, um cão deficiente precisa de mais atenção e
cuidados, como dissemos, e também de carinho, mas não de
piedade de “superior” para “inferior”. Mesmo que um peludo com
necessidades especiais não chegue a ser normal, pensemos: afinal
de contas, o que é ser normal? Mais importante é ser feliz e não
causar mal a outros seres.
Não devemos ter aquela piedade inferiorizante, mas sim saber
conviver com as diferenças, aceitá-las para tratá-las de acordo.
Stephen Hawking, Stevie Wonder e Herbert Vianna são apenas
três exemplos humanos de superação, e a perfeição, como diria
Gilberto Gil, é meta de goleiro. Não importa se você acredita que
seu cão é deficiente pela vontade de Deus ou por acaso e
determinismo histórico; é bom pensarmos no cão deficiente como
sendo, mais que portador de necessidades especiais, um cão que
já é ele mesmo especial.
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