terça-feira, 17 de julho de 2012

O cão não é o vilão


Desinformação e comodismo do governo levam desnecessariamente milhares de cães portadores de leishmaniose a procedimentos de eutanásia.

Por Guilherme Cavalcante

No ano de 2010, a publicitária Val Reis estava em sua residência quando agentes de saúde do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) de Campo Grande (MS) bateram à porta. A visita teve como finalidade coletar sangue de cães para identificar animais portadores de leishmaniose, uma doença parasitária que pode levar à morte não só cães, mas seres humanos. Na casa de Val havia um único cão, Half, na família há mais de uma década. “O Half era um cão saudável, não tinha razão para alarde”, conta. Seis meses depois, entretanto, outra visita do CCZ confirmou que o animal era portador da doença e que, portanto, deveria ser recolhido para eutanásia.

  O que era para ser uma sim­ples me­dida para o con­trole de uma zo­o­nose se tornou o trans­torno de uma fa­mília. Com a vi­sita do CCZ, a in­for­mação (equi­vo­cada) que Val tinha até aquele mo­mento era de que a do­ença po­deria ser trans­mi­tida para hu­manos a partir dos cães. “Foi um choque, a gente nunca es­pera esse tipo de no­tícia. Era tudo de­sen­con­trado, a gente fica meio sem saber o que fazer. O Half nunca apre­sentou ne­nhum sin­toma da do­ença, tanto que refiz o exame vá­rias vezes para acre­ditar no di­ag­nós­tico”, conta.Como não deu re­torno ao CCZ, Val re­lata que dias de­pois re­cebeu uma li­gação do órgão, que ame­açou aplicar multa caso o animal não fosse en­tregue. “O Half é um cão que es­tava co­migo há anos, desde que os meus fi­lhos eram pe­quenos. Eu queria saber o que era a do­ença e o que eu po­deria fazer. Não dava para sim­ples­mente en­tregar um animal que era parte da fa­mília”. E assim co­meçou uma cru­zada por vá­rias clí­nicas ve­te­ri­nária em busca de in­for­mação até ser ins­truída cor­re­ta­mente sobre quais os riscos reais de con­tágio da leish­ma­niose, modos de pre­venção e, prin­ci­pal­mente, a pos­si­bi­li­dade real de tra­ta­mento para seu cão. "Pa­rece que essa de­sin­for­mação é pro­po­sital para que o dono entre em pâ­nico e en­tregue o cão. Hoje sei que tenho di­reito de tratar meu ca­chorro e não me ar­re­pendo de nada do que fiz, pelo con­trário, faria de novo. Meu cão faz parte da minha vida. Na hora que ele fi­casse do­ente e que mais pre­ci­sasse de mim, ja­mais iria aban­doná-lo”, conta a pu­bli­ci­tária.

Na Eu­ropa, o tra­ta­mento de cães é o mesmo dos hu­manos e ocorre desde a dé­cada de 1940 

His­tó­rias como a de Val estão di­luídas entre ou­tras mi­lhares não só em Campo Grande, mas em vá­rias ci­dades bra­si­leiras que, em geral, optam por se­guir as di­re­trizes do Pro­grama Na­ci­onal de Vi­gi­lância e Con­trole da Leish­ma­niose Vis­ceral, pro­posto pelo Mi­nis­tério da Saúde.
 En­tre­tanto, o prin­cipal órgão de saúde do país segue na con­tramão do que é pra­ti­cado em países de­sen­vol­vidos, com bons in­di­ca­dores no com­bate à leish­ma­niose: em todo o mundo, so­mente no Brasil existe a po­lí­tica de eu­ta­násia de cães so­ro­po­si­tivos. Na ba­talha contra a do­ença, o cão as­sume o papel de vilão quando, na re­a­li­dade, é tão ví­tima quanto o ser hu­mano.

Po­lí­ticas de ma­tança
Para boa parte da po­pu­lação, a questão da leish­ma­niose é tra­tada no Brasil de forma ne­bu­losa, isso porque há muita de­sin­for­mação quanto aos pro­ce­di­mentos exe­cu­tados pelo poder pú­blico. 
Atu­al­mente, a mai­oria das ci­dades se­guem as di­re­trizes do Pro­grama Na­ci­onal de Vi­gi­lância e Con­trole da Leish­ma­niose Vis­ceral, que se ba­seiam em ver­tentes como aten­di­mento ao homem, ações edu­ca­tivas de com­bate à mosca que trans­mite a do­ença, o con­trole ve­to­rial do in­seto trans­missor (como bor­ri­fa­ções re­si­duais em do­mi­cí­lios, fu­macê etc.) e, fi­nal­mente, a eli­mi­nação dos re­ser­va­tó­rios ur­banos - ou seja, sa­cri­fício de cães por­ta­dores da do­ença, com o ob­je­tivo de re­duzir a trans­missão ao homem e aos ou­tros cães.
Manter o cão vivo e lhe fa­vo­recer
tra­ta­mento têm se mos­trado muito mais
eficaz que sua eli­mi­nação

O ponto mais po­lê­mico das ações do go­verno se con­centra na ma­tança de cães, o que ob­vi­a­mente pro­voca re­a­ções das mais exa­cer­badas. Di­versos seg­mentos da so­ci­e­dade, que in­clu­sive bus­caram apoio da co­mu­ni­dade ci­en­tí­fica, acusam que a eu­ta­násia de cães é uma me­dida inócua para conter a leish­ma­niose. Um ar­gu­mento comum é que em 2010, em Campo Grande, cerca de 11,5 mil cães foram eu­ta­na­si­ados e mesmo assim houve um au­mento de 20% do nú­mero de casos hu­manos em re­lação ao ano an­te­rior. Aliás, é na ca­pital sul-mato-gros­sense que a ONG Abrigo dos Bi­chos luta pela di­vul­gação da pos­si­bi­li­dade de tra­ta­mento da leish­ma­niose. “A po­pu­lação as­siste à questão de uma forma omissa e às vezes sob ter­ro­rismo [do poder pú­blico]. Por não terem  
conhecimento jurídico e nem científico, as pessoas acabam entregando seu animal para a morte, sem necessidade”, explica a veterinária Maria Lúcia Metelo, presidente da organização. “O que temos hoje é uma política assassina”.
A briga atravancada entre protetores de animais e o poder público começa na desinformação generalizada pela impossibilidade do tratamento, atualmente cercado de medidas proibitivas. De acordo com o Manual de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral, publicação do Ministério da Saúde, o tratamento de cães não é uma medida recomendada, já que “leva ao risco de selecionar parasitas resistentes às drogas utilizadas para o tratamento humano”. Para o impedimento, o governo se ampara na Portaria Interministerial 1426/2008, dos Ministérios da Agricultura e da Saúde, que proíbe uso de medicamentos para humanos.
Relatos científicos apontam que
cães tratados não só se recuperaram dos
sintomas como foram negativados 

Segundo a Dra. Sibele Luzia de Souza Cação, presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária de Mato Grosso do Sul (CRMV-MS), o entendimento que existe no governo é razoável por razões biológicas, já que nunca existe risco zero de gerar parasitas resistentes às poucas drogas disponíveis no mercado. “Mas isso nunca foi provado cientificamente”, destaca. De fato, o tratamento de cães infectados ocorre desde a década de 1940 na Europa, onde o tratamento é o mesmo dos humanos e até hoje não há relatos de resistências em cepas extraídas de caninos. A ineficiência nos tratamentos só é observada em lugares cujo grau de desnutrição dos pacientes é extremo, como em países da África e na Índia.

Após a portaria, foram surgindo, então, alternativas de tratamento para os cães que não feriam o texto da portaria. “Surgiram alguns protocolos apresentados em vários Simpósios e Seminários de leishmaniose que aconteceram por todo o Brasil, inclusive aqui em Campo Grande. Esses protocolos sempre foram apresentados por médicos veterinários da academia, ou seja, profissionais que estão atuando nas universidades, tanto no ensino como na pesquisa. E eram mostrados resultados contundentes de cura clínica dos animais tratados”, diz Cação.

Não é só o cão
Outro argumento de quem combate o modus operandi do governo em relação a leishmaniose é que não só o cão é reservatório do parasita: a leishmaniose é, na verdade, uma doença basicamente de mamíferos. Em 2002, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade de São Paulo (USP) investigaram 11 espécies de mamíferos em Recife (PE). Como resultado, constataram que ratos urbanos também são reservatórios de leishmânias. Além disso, animais silvestres, como lobos, raposas, roedores e marsupiais também são alvo dos flebótomos, os insetos que transmitem a doença pela picada. “O problema da eutanásia é que ela desfoca o alvo principal, que é o controle de vetor. Se o cão foi infectado é porque existe um flebótomo no local. Sacrificar o cão não funciona porque o mosquito continuará em ação, sem falar que existem outros reservatórios que não são cães”, explica André Luís Soares da Fonseca, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Um veterinário qualificado
precisa acompanhar e prescrever todas
as etapas do tratamento 

A propósito, manter o cão vivo e lhe favorecer tratamento têm se mostrado muito mais eficaz que sua eliminação. Um estudo conduzido por dois anos em São Paulo por pesquisadores da USP e divulgado em 2010 observou que o uso de coleiras repelentes e de inseticidas implicou numa redução de 80% do número de casos de leishmaniose canina e humana, com o diferencial de que o uso das coleiras especiais também ajudou a eliminar o flebótomo. “O tratamento tem função de saúde pública, sim, já que quanto menor a carga parasitária, menor o risco de transmissão”, aponta André Fonseca, que também é coordenador da Comissão Estadual de Leishmaniose do CRMV-MS. O cachorro, a propósito, funciona como uma isca para o flebótomo. “Quando o inseto se aproxima do cão, ou ele não pica o animal e morre de fome ou, se o mosquito sugar o sangue, morre com o efeito do inseticida”, aponta.

Tratamento e prevenção
Outro mito em torno do tratamento da leishmaniose é que o resultado obtido garante apenas uma sobrevida do cão. Existem diversos relatos científicos nos quais os animais tratados não só se recuperaram das lesões cutâneas e viscerais comuns da doença, como também foram negativados, ou seja, deixaram de acusar o parasita em exames sorológicos. Mas este resultado, assim como no ser humano, varia com o estado de saúde do cão quando o procedimento é iniciado. “O prognóstico depende do estado do fígado e do rim do animal. Com estes órgãos em bom estado, ele vai responder bem ao tratamento. Isso também acontece no ser humano”, explica André Fonseca.

Leishmaniose

É o caso do Bill, cão de es­ti­mação do es­tu­dante Kayo La­port. Bill, que já tem 10 anos, ini­ciou o tra­ta­mento contra leish­ma­niose há oito meses, logo após de­sen­volver sin­tomas. “A gente não tinha cer­teza da do­ença, mas a ve­te­ri­nária tinha aler­tado para os sin­tomas.

Fi­zemos os exames e deu po­si­tivo. De­pois que a gente soube que tinha tra­ta­mento, nem passou pela nossa ca­beça a ideia de eu­ta­násia. Hoje o Bill está bem, sem sin­tomas. Uma vez por mês ele vai ao ve­te­ri­nário para uma ava­li­ação e para tomar al­guns su­ple­mentos, mas porque ele já é um cão idoso”, conta Kayo.

Em geral, o tra­ta­mento é re­a­li­zado em duas etapas, cuja pri­meira uti­liza drogas an­ti­pa­ra­si­tá­rias por um pe­ríodo que nor­mal­mente varia de quatro meses a dois anos e meio, de­pen­dendo da agres­si­vi­dade do me­di­ca­mento. Na se­gunda etapa, pa­ra­lela à pri­meira, re­mé­dios que re­primem o cres­ci­mento das leish­mâ­nias no or­ga­nismo também são ad­mi­nis­trados di­a­ri­a­mente nos cães, até o fim da vida. As­so­ciado aos tra­ta­mento clí­nico, ve­te­ri­ná­rios também pres­crevem o uso de co­leiras ou de subs­tân­cias re­pe­lentes, além de de­de­ti­zação es­pe­cí­fica nos lo­cais fre­quen­tados pelo cão e há­bitos de hi­giene, como manter quin­tais limpos.

Por fim, exames fre­quentes são re­pe­tidos, em média, a cada quatro meses, para ve­ri­ficar a carga pa­ra­si­tária e o es­tado de saúde do animal. Um ve­te­ri­nário qua­li­fi­cado pre­cisa acom­pa­nhar – e pres­crever – todas as etapas da te­rapia. “O tra­ta­mento é uma questão ética pela vida. São duas ma­neiras de con­trolar a leish­ma­niose: uma é ma­tando o animal e a outra é tra­tando o animal. Então por que eu vou matar em vez de tratar?”, con­clui André Fon­seca. 
Outras possibilidades
En­quanto o go­verno não muda a es­tra­tégia de com­bate à leish­ma­niose, os cães e seus pro­pri­e­tá­rios ficam re­féns da pró­pria sorte, na de­pen­dência da di­vul­gação de in­for­ma­ções con­sis­tentes sobre a do­ença. Atu­al­mente, a apro­vação de va­cinas de imu­ni­zação contra a leish­ma­niose es­barra na bu­ro­cracia es­ta­be­le­cida en­tres os mi­nis­té­rios da Saúde e Mi­nis­tério da Agri­cul­tura, Pe­cuária e Abas­te­ci­mento (Mapa). Mas vale lem­brar que, além do tra­ta­mento, existem duas va­cinas com alto grau de de­fesa contra a do­ença, li­be­radas pelo Mi­nis­tério da Agri­cul­tura: a Leish-Tech e a Leish­mune. Existe, também, uma
ter­ceira va­cina com pe­dido de li­be­ração, cha­mada Ca­ni­Leish, que já existe na Eu­ropa.

Também tra­mita no Con­gresso Na­ci­onal um pro­jeto de lei que prevê fim do sa­cri­fício de ani­mais, de au­toria do de­pu­tado fe­deral Ge­raldo Re­sende (PMDB-MS). O pro­jeto é em­pa­re­lhado com a li­be­ração de va­cinas e uti­li­zação de co­leiras re­pe­lentes, além do tra­ta­mento - como al­ter­na­tiva a po­lí­tica de eu­ta­ná­sias de­sem­pe­nhada pelo Mi­nis­tério da Saúde. O pro­jeto aguarda apro­vação na Co­missão de Se­gu­ri­dade So­cial e Fa­mília da Câ­mara dos De­pu­tados.
   
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"Em cada corpo de animal, reside um espírito imortal, em evolução rumo a humanização, através de seculares milênios e incontáveis reencarnações"
 

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